A
|
s
bibliotecas são como aeroportos. São lugares de viagem. Entramos numa
biblioteca como quem está a ponto de partir. E nada é pequeno quando tem uma
biblioteca. O mundo inteiro pode ser convocado à força dos seus livros. Todas
as coisas do mundo podem ser chamadas a comparecer à força das palavras, para
existirem diante de nós como matéria de imaginação. As bibliotecas são do
tamanho do infinito e sabem toda a maravilha.
Os livros são família direta dos
aviões, dos tapetes-voadores ou dos pássaros. Os livros são da família das
nuvens e, como elas, sabem tornar-se invisíveis enquanto pairam, como se
entrassem para dentro do próprio ar, a ver o que existe dentro do ar que não se
vê.
O leitor entra com o livro para
dentro do ar que não se vê.
Com um pequeno sopro, o leitor
muda para o outro lado do mundo ou para outro mundo, do avesso da realidade até
ao avesso do tempo. Fora de tudo, fora da biblioteca. As bibliotecas não se
importam que os leitores se sintam fora das bibliotecas.
Os
livros são toupeiras, são minhocas, eles são troncos caídos, maduros de uma
longevidade inteira, os livros escutam e falam ininterruptamente. São estações
do ano, dos anos todos, desde o princípio do mundo e já do fim do mundo. Os
livros esticam e tapam furos na cabeça. Eles sabem chover e fazer escuro, casam
filhos e coram, e choram, imaginam que mais tarde voltam ao início, a serem
como crianças. Os livros têm crianças ao dependuro e giram como carrosséis para
as ouvir rir.
Os livros têm olhos para todos
os lados e bisbilhotam o cima e baixo, o esquerda e direita de cada coisa ou de
coisa nenhuma. Nem pestanejam de tanta curiosidade. Querem ver e contar. Os
livros é que contam.
As bibliotecas só aparentemente
são sossegadas. O sossego das bibliotecas é a ingenuidade dos incautos. Porque
elas são como festas ou batalhas contínuas e soam trombetas a cada instante e
há sempre quem discuta com fervor o futuro, quem exija o futuro e seja
destemido, merecedor da nossa confiança e da nossa fé.
Adianta pouco manter os livros de
capas fechadas. Eles têm memória absoluta. Vão saber esperar até que alguém os
abra. Até que alguém se encoraje, esfaime, amadureça, reclame o direito de
seguir maior viagem. E vão oferecer tudo, uma e outra vez, generosos e
abundantes. Os livros oferecem o que são, o que sabem, uma e outra vez, sem
refilarem, sem se aborrecerem de encontrar infinitamente pessoas novas. Os
livros gostam de pessoas que nunca pegaram neles, porque têm surpresas para
elas e divertem-se a surpreender. Os livros divertem-se.
As pessoas que se tornam
leitoras ficam logo mais espertas, até andam três centímetros mais altas, que é
efeito de um orgulho saudável de estarem a fazer a coisa certa. Ler livros é
uma coisa muito certa. As pessoas percebem isso imediatamente. E os livros não
têm vertigens. Eles gostam de pessoas baixas e gostam de pessoas que ficam mais
altas.
Depois
da leitura de muitos livros pode ficar-se com uma inteligência admirável e a
cabeça acende como se tivesse uma lâmpada dentro. É muito engraçado. Às vezes,
os leitores são tão obstinados com a leitura que nem acendem a luz. Ficam com o
livro perto do nariz a correr as linhas muito lentamente para serem capazes de
ler. Os leitores mesmo inteligentes aprendem a ler tudo. Leem claramente o
humor dos outros, a ansiedade, conseguem ler as tempestades e o silêncio, mesmo
que seja um silêncio muito baixinho. Os melhores leitores, um dia, até aprendem
a escrever. Aprendem a escrever livros. São como pessoas com palavras por
fruto, como as árvores que dão maças ou laranjas. Dão palavras que fazem
sentido e contam coisas às outras pessoas.
Já vi gente a sair de dentro dos
livros. Gente atarefada até com mudar o mundo. Saem das palavras e vestem-se à
pressa com roupas diversas e vão porta fora a explicar descobertas importantes
para tratar. Precisamos de estar sempre atentos. Às vezes, compete-nos dar
despacho. Sim, compete-nos pôr mãos ao trabalho. Mas sem medo. O trabalho que
temos pela escola dos livros é normalmente um modo de ficarmos felizes.
Este texto é um abraço especial
à biblioteca da escola Frei João, de Vila do Conde, e à biblioteca do Centro
Escolar de Barqueiros, concelho de Barcelos. As pessoas que ali leem livros
saberão porquê. Não deixa de ser também um abraço a todas as demais bibliotecas
e bibliotecários, na esperança de que nada nos convença de que a ignorância ou
o fim da fantasia e do sonho são o melhor para nós e para os nossos. Ler é
esperar por melhor.
(Valter Hugo Mãe, "As Bibliotecas"in Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº1112, de 15 a 29 de maio de 2013, p.34)
Sem comentários:
Enviar um comentário