Estou vivo e escrevo sol
Eu escrevo versos ao meio-dia
e a morte ao sol é uma cabeleira
que passa em fios frescos sobre a minha cara de vivo
Estou vivo e escrevo sol
Se as minhas lágrimas e os meus dentes cantam
no vazio fresco
é porque aboli todas as mentiras
e não sou mais que este momento puro
a coincidência perfeita
no acto de escrever sol
A vertigem única da verdade em riste
a nulidade de todas as próximas paragens
navego para o cimo
tombo na claridade simples
e os objectos atiram as suas faces
e na minha língua o sol trepida
melhor que beber vinho é mais claro
ser no olhar o próprio olhar
a maravilha é este espaço aberto
a rua
um grito
a grande toalha do silêncio verde
António Ramos Rosa (1924-2013), uma vida dedicada à
poesia
“Morreu esta
segunda-feira em Lisboa, aos 88 anos, o poeta e ensaísta António Ramos Rosa, um
dos nomes cimeiros da literatura portuguesa contemporânea, autor de quase uma
centena de títulos, de O Grito Claro
(1958), a sua célebre obra de estreia, até Em
Torno do Imponderável, um belo livro de poemas breves publicado em 2012. […]
Além da sua
vastíssima obra poética, escreveu livros de ensaios que marcaram sucessivas
gerações de leitores de poesia, como Poesia,
Liberdade Livre (1962) ou A Poesia
Moderna e a Interrogação do Real (1979), traduziu muitos poetas e
prosadores estrangeiros, sobretudo de língua francesa, e organizou uma
importante antologia de poetas portugueses contemporâneos (a quarta e última
série das Líricas Portuguesas). Era
ainda um dotado desenhador.
Prémio Pessoa
em 1988, António Ramos Rosa, natural de Faro, recebeu ainda quase todos os mais
relevantes prémios literários portugueses e vários prémios internacionais, quer
como poeta, quer como tradutor. […]
Obra lírica imensa
Nascido em
Faro em 1924 — faria 89 anos a 17 de Outubro —, António Ramos Rosa frequentou
ali o liceu, mas, por razões de saúde, não terminaria os estudos secundários.
Uma escassez de estudos formais que a sua avidez de leitor não tardou a
compensar largamente.
Trabalhou
algum tempo como empregado de escritório — experiência que inspirou o célebre poema
de “Um Funcionário Cansado”, incluído no seu livro de estreia —, ao mesmo tempo
que dava explicações de português, inglês e francês e traduzia autores
estrangeiros, primeiro para a Europa-América e depois para outras editoras.
Envolveu-se,
logo após o final da segunda guerra, na oposição ao salazarismo, militando no
MUD Juvenil e participando em manifestações. Nos anos 50 ajudou a fundar e
coordenou várias revistas literárias, incluindo Árvore, Cassiopeia e Cadernos do Meio-Dia, nas quais
colaborou com textos de crítica literária e poemas.
Embora
publicasse poemas em revistas desde o início dos anos 50, o seu primeiro livro
só saiu em 1958, aos 34 anos. Mas a partir desta estreia algo tardia, nunca
mais deixará de editar poesia a um ritmo impressionante. […]
Bastante
indiscutível é a importância de António Ramos Rosa, quer como poeta quer como
crítico, para a evolução da poesia portuguesa (e do gosto dos respectivos
leitores) ao longo dos anos 60 e no início da década seguinte. Na atenção à
materialidade do texto, numa dimensão política que dispensava a explicitude do
neo-realismo, no rigor construtivo, até numa certa contaminação filosófica, a
poesia de Ramos Rosa tinha, nos anos 60, afinidades bastante óbvias com poetas
como Carlos de Oliveira ou Gastão Cruz. No entanto, foi-se tornando nela cada
vez mais insistente a procura de uma espécie de voz original que pudesse cantar
o mundo ao mesmo tempo que o criava. E se durante algum tempo a sua poesia
ainda inclui explicitamente, como um dos seus tópicos, o fracasso desse
impossível retorno à origem, vai depois tornar-se, cada vez mais, um hino
reconciliado e extasiado com a diversidade exultante do real, uma música que
destaca a sensualidade das formas — de uma mulher, de uma planta, de um curso
de água, do flanco de um cavalo, mas também das próprias palavras — ao mesmo
tempo que ela própria contribui para erotizar o mundo.
Livros como O Ciclo do Cavalo (1975) ou Volante Verde (1986) costumam ser
invocados, e com boas razões, como alguns dos momentos cimeiros desta imensa
obra lírica. Mas há obras recentes que tiveram pouco eco crítico e são
notáveis, como o criativo Nomes de
Ninguém (1997), cujos poemas partem todos de nomes femininos inventados, ou
As Palavras (2001), onde encontrámos
um inesperado Ramos Rosa a ironizar com o modo como foi sendo lido. […]”
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